quinta-feira, 27 de junho de 2013

Miguel Sousa Tavares...




... e a greve dos professores 




Porque sei reconhecer o mérito e a razão a quem a tem e a sabe exprimir, do mesmo modo que fiz uma crítica rigorosa ao seu último livro, também aqui deixo o meu aplauso incondicional pelas palavras desassombradas e rigorosas de MST sobre a palhaçada que constituiu esta última greve dos professores.

Para quantos não tiveram oportunidade de ter lido o artigo, aqui fica a transcrição com a devida vénia e o total crédito ao autor.

Bem-haja!



O Sindicalista do PCP Mário Nogueira, os Professores e os desgraçados dos Alunos


* Por Miguel Sousa Tavares

A minha entrada no ensino foi feita numa pequeníssima aldeia rural do norte. Éramos uns 80 alunos, da 1ª à 4ª classe, todos juntos na mesma e única sala de aula da escola - que não me lembro se tinha ou não casas-de-banho, mas sei que não tinha qualquer espécie de aquecimento contra o frio granítico, de Novembro a Março, que nos colava às carteiras duplas, petrificados como estalactites. Lembro-me de que o "recreio" era apenas um pequeno espaço plano, enlameado no Inverno, e onde jogávamos futebol com uma bola feita de meias velhas e balizas marcadas com pedras. A escola não tinha um vigilante, um porteiro, uma secretária administrativa. Ninguém mais do que a D. Constança, a professora que, sozinha, desempenhava todas essas tarefas e ainda ensinava os rios do Ultramar aos da 4ª classe, a história pátria aos da 3ª, as fracções aos da 2ª, e as primeiras letras aos da 1ª. Ela, sozinha, constituía todo o pessoal daquilo a que agora se chama o 1º ciclo. Se porventura, adoecesse, ou se na aldeia houvesse, que não havia, um médico disposto a passar-lhe uma baixa psicológica ou outra qualquer quando não lhe apetecesse ir trabalhar, as 80 crianças da aldeia em idade escolar ficariam sem escola. Mas ela não falhou um único dia em todo o ano lectivo e eu saí de lá a saber escrever e para sempre apaixonado pela leitura. Devo-lhe isso eternamente.

Nesse tempo, não havia Parque Escolar, não havia pequenos-almoços na escola (que boa falta faziam!), não havia aquecimento nas salas, não havia o recorde de Portugal e da Europa de baixas profissionais entre os professores, não havia telemóveis nem iPads com os alunos, não havia "Magalhães" ao serviço dos meninos, mas sim lousas e giz, os professores não faziam greves porque estavam "desmotivados" ou "deprimidos" e a noção de "horário zero" seria levada à conta de brincadeira. Era assim a vida.

Não vou (notem: não vou) sustentar que assim é que estava bem. Limito-me a dizer que tudo é relativo e que nada do que temos por adquirido, excepto a morte, o foi sempre ou o será para sempre. E sei que na Finlândia - o país considerado modelo no ensino básico e secundário pela OCDE - os professores trabalham mais horas do que aqui, não faltam às aulas e ganham proporcionalmente menos. Com resultados substancialmente melhores, do único ponto de vista que interessa aos pais e aos contribuintes: o desempenho escolar dos alunos.

Só uma classe que recusou, como ultraje, a possibilidade de ser avaliada para efeitos de progressão profissional - isto é, uma classe onde os medíocres reivindicaram o direito constitucional de ganharem o mesmo que os competentes - é que se pode permitir a irresponsabilidade e a leviandade de decretar uma greve aos exames nacionais. Nisso, são professores exemplares: transmitem aos alunos o seu próprio exemplo, o exemplo de quem acha que os exames, as avaliações, são um incómodo para a paz de um sistema assente na desresponsabilização, na nivelação de todos por baixo, na ausência de estímulo ao mérito e ao esforço individual.

Mas a greve dos professores vai muito para lá deles: reflecte o estado de espírito de uma parte do país que não entendeu ou não quer entender o que lhe aconteceu. Deixem-me, então recordar: Portugal faliu. O Portugal das baixas psicológicas, dos direitos adquiridos para sempre, das falcatruas fiscais, das reformas antecipadas, dos subsídios para tudo e mais alguma coisa, dos salários iguais para os que trabalham e os que preguiçam, faliu. Faliu: não é mais sustentável. Podemos discutir, discordar, opormo-nos às condições do resgate que nos foi imposto e à sua gestão por parte deste Governo: eu também o faço e veementemente. Mas não podemos, se formos sérios, esquecer o essencial: se fomos resgatados, é porque fomos à falência; e, se fomos à falência, é porque não produzimos riqueza que possa sustentar o modo de vida a que nos habituámos. Se alguém conhece uma alternativa mágica, em que se possa ter professores sem crianças, auto-estradas sem carros, reformas sem dinheiro para as pagar, acumulando dívida a 6, 7 ou 8% de juros para a geração seguinte pagar, que o diga. Caso contrário, tenham pudor: não se fazem greves porque se acaba com os horários zero, porque se estabelece um horário semanal (e ficcional) de 40 horas de trabalho ou porque o Estado não pode sustentar o mesmo número de professores, se os portugueses não fazem filhos.

Por mais que respeite o direito à greve, causa-me uma sensação desagradável ver dirigentes sindicais, dos professores e não só, regozijarem-se porque ninguém foi trabalhar. Ver um sindicalismo de bota-abaixo constante, onde qualquer greve, qualquer manifestação, é muito mais valorizada e procurada do que qualquer acordo e qualquer negociação - como se, por cada português com vontade de trabalhar, houvesse outro cujo trabalho consiste em dissuadi-lo desse vício. Assim como me causa impressão, no estado em que o país está, saber que quase 200.000 trabalhadores pediram a reforma antecipada em 2012, mesmo perdendo dinheiro, e apesar de se queixarem da crise e dos constantes cortes nas pensões. Porque a mensagem deles é clara: "Eu, para já, mesmo perdendo dinheiro, safo-me. Os otários que continuarem a trabalhar e que se vierem a reformar mais tarde, em piores condições, é que lixam!" É o retrato de um país que parece ter perdido qualquer noção de destino colectivo: há um milhão de portugueses sem trabalho e grande parte dos que o têm, aparentemente, só desejam deixar de trabalhar. Será assim que nos livraremos da troika?

As coisas chegaram a um ponto de anormalidade tal, que, quando o ministro da Educação, no exercício do seu mais elementar dever - que é o de defender os direitos dos alunos contra a greve dos professores - convoca todos eles para vigiar os exames, aqui d'El Rey na imprensa bem-pensante que se trata de sabotar o legítimo direito à greve. Ou seja: que haja professores (que os há, felizmente!) dispostos a permitir que os alunos tenham exames é uma violação ilegítima do direito dos outros a que eles não tenham exames. Di-lo o dr. Garcia Pereira, o trabalhadores e do dr. Jardim, infalível defensor da classe operária, e o mesmo que, no final do meu tempo de estudante, na Faculdade de Direito de Lisboa, invocando os ensinamentos do grande camarada Mao, decretava greve aos "exames burgueses" - que o fizeram advogado.

Não contesto que as greves, por natureza, causem incómodos a outrem - ou não fariam sentido. Mas há limites para tudo. Limites de brio profissional: um cirurgião não resolve entrar em grave quando recebe um doente já anestesiado pronto para a operação; um controlador aéreo não entra em greve quando tem um avião a fazer-se à pista; um bombeiro não entra em greve quando há um incêndio para apagar. Eu sei que isto que agora escrevo vai circular nos blogues dos professores, vai ser adulterado, deturpado, montado conforme dê mais jeito: já o fizeram no passado, inventando coisas que eu nunca disse, e só custa da primeira vez. Paciência, é isto que eu penso: esta greve dos professores aos exames, por muitas razões que possam ter, é inadmissível.

* Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

Texto publicado na edição do Expresso de 15 de Junho de 2013

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Madrugada suja...

 de Miguel Sousa Tavares


Hesitei profundamente antes de me abalançar a escrever esta crónica. Até porque tive uma elevada consideração pelo autor (MST) e custa-me apontar o dedo a quem escreveu algumas das melhores páginas que li na vida. Mas entendi que deveria fazer os meus comentários para que outros leitores desprevenidos não comprem gato por lebre.

Se, numa escala de 0 a 20 eu colocaria «Equador» no topo,  «Rio das Flores» lá bem próximo e a «No teu Deserto» daria igualmente uma classificação elevada pela sensibilidade, humanidade e ternura com que foi escrito, não posso dar uma classificação mais do que «suficiente» a uma obra que só será um best-seller (se o chegar a ser) pelo prestígio granjeado por MST nas suas obras anteriores. Ou seja, se as pessoas forem ao engano.

Devo dizer, em abono da verdade, que o enredo é interessante como tal, denuncia situações verídicas e, infelizmente, frequentes no nosso país e que eu não enjeitaria o talento de escrever uma história semelhante. Mas isso sou eu, um zé-ninguém ao lado do autor. De MST seria de esperar muito mais.

Mas vamos por partes. Por interessante que o enredo seja, tal como foi trabalhado, ele está ao nível das telenovelas brasileiras. Que também têm o seu público fiel, não o nego, mas que não é do mesmo nível intelectual dos leitores do «Equador». E, para começar, MST deveria ter um pouco mais de cuidado na sua pesquisa para escrever este livro.

Senão vejamos:



Página 39 - «São Berliets - informou-me o Francisco que conhecera aqueles blindados em Moçambique, em 63». Haja Deus. Blindados? As Berliets? Senhor Dr. Miguel Sousa Tavares, as Berliets são camiões militares, não são blindados. Anda a fazer confusão com as Chaimites? Ai a sua cultura geral...

Página 75 - «Imagino o que lhe não terá custado falar para alguém encarregue...» Haja dó, senhor MST, já alguma vez ouviu dizer que um camião está carregue ou que alguém está sobrecarregue de trabalho? Encarregar e sobrecarregar são verbos compostos do verbo carregar e conjugam-se do mesmo modo. Para alguém que recusa utilizar o novo acordo ortográfico (e muito bem na minha opinião) deveria abster-se de utilizar um neo-neologismo criado nos últimos anos pelos betinhos da capital. A palavra «encarregue» existe, sim, mas é o presente do conjuntivo (que eu encarregue...) e não o particípio passado. Assim aprendi eu na escola, há muitos anos. O senhor não?

Página 313 - «Quero que faças um teste de sangue e um teste de esperma». Senhor doutor, sou casado com uma professora de Genética Humana da Universidade do Porto, mas não é preciso tanto para ver o enorme disparate que aqui está.  Não costuma ver as séries dos CSI na televisão? Face ao relatado na página 343 («-O teu sangue corresponde às amostras que encontrámos no carro, o esperma não») e para esclarecimento da situação dos intervenientes dentro do carro o percurso a seguir seria a determinação do perfil do DNA das manchas de sangue e esperma encontradas e comparação com o perfil do DNA do suspeito, neste caso, do Filipe Madruga. Para a determinação deste último perfil, o que se seria de fazer, porque é o que se faz na prática, seria um simples teste realizado a partir de um esfregaço bucal. Note-se que tratando-se de um assunto criminal tal processo teria que ser conduzido num Instituto de Medicina Legal.

Mas há mais.

Página 16 - «... o falso Alexandre assistiu... aos movimentos compulsivos com que o seu amigo João a obrigou a engoli-lo até ao fim... derramando sobre a cara e o incipiente peito adolescente...» e mais abaixo « ...viu depois como a mesma cena se repetiu com o boçal do Zé Maria...»

No entanto, mais adiante, a versão já não é a mesma. Na

Página 253 - «- E ela fez isso a todos de livre vontade? - Pareceu-me que sim, embora estivesse bêbada...» «- ...E fez o mesmo exactamente a todos? ... - Não: ao Zé Maria foi até ao fim»

Página 254 - « -  E tem a certeza de que foi só ele? - Tenho.»

Mas ainda há mais.

Página 143 e seguintes: Veja-se o estilo de linguagem e as palavras eruditas da avó no seu diálogo com Filipe. São de uma pessoa de baixa instrução de «Medronhais da Serra» ou de uma pessoa com a cultura de MST? Haja congruência

E, já agora, como é que uma pessoa sem conhecimentos jurídicos como um arquitecto paisagista, sem as capacidades de um hacker nos domínios da informática e sem conhecimentos financeiros, pôde seguir os percursos sinuosos das finanças do Dr. Luís Morais e da Terramar até às Ilhas Cayman, até Angola e deslindar todos os esquemas de corrupção subjacentes? Das duas uma: ou MST não sabe do que está a falar e está a enganar os leitores, ou sabe e, como advogado, deveria fazer a denúncia dos casos que conhece tal como fez o seu herói Filipe Madruga.

Não vou aqui tecer comentários à recuperação da vítima Eva Ribeiro nem ao parecer técnico de Filipe Madruga sobre o empreendimento da Blue Ocean. Não tenho conhecimentos sobre essas matérias e não posso aventurar-me em águas desconhecidas. Mas, se MST se aconselhou junto de profissionais dessas áreas, teria sido elegante redigir-lhes um agradecimento. Como faz José Rodrigues dos Santos.

E, para terminar, porque razão nem num epílogo se dá a João Diogo e ao Comendador o tratamento de crápulas que eles merecem? Afinal a Eva e o Filipe ficaram com a faca e o queijo na mão. E, já agora, embora no texto haja uma sugestão de um final feliz, em benefício das leitoras não ficava mal ir um pouco mais além.

E por aqui me fico. Oxalá Miguel Sousa Tavares consiga inverter a curva descendente do seu percurso literário e voltar a brindar-nos com obras primas como as do passado.

P.S. Diz-se que um escritor, quando começa, escreve para o seu próprio prazer, mais tarde, para agradar aos amigos e, por fim, apenas para ganhar dinheiro. Será este o caso?